Capítulo 2: O Cicatriz da Meia-Lua: Uma Marca um Destino
- Castelobruxo64
- 28 de abr. de 2023
- 10 min de leitura
Atualizado: 3 de mai. de 2023

uase 5 anos haviam se passado desde o dia em que os Souzas acordaram e encontraram sua sobrinha deitada no sofá segurando uma carta, mas a Praça da Liberdade mal havia mudado. O sol nasceu sobre os mesmos jardins, refletindo nas curvas do prédio Edifício Niemeyer e invadindo as janelas da cozinha dos Souzas, e permaneceu quase o mesmo que tinha sido na noite em que o Sr. Souza ouviu as terríveis notícias sobre o golpe militar. Apenas as fotografias no console da lareira mostravam o tempo que já havia passado. Cinco anos antes, havia um monte de fotografias de uma criança mimada sorridente na praia, na cachoeira do Parque do Inhotim - mas Pedro Souza já não era mais um bebê; e agora as fotografias mostravam um rapaz loiro e alto com um corte de cabelo militar. Não havia indicação na sala de estar de que havia outra criança na casa, no entanto, Madil ainda estava lá, atualmente dormindo, mas não por muito tempo. Sua tia Ana acordou, e foi a sua voz aguda que produziu o primeiro som do dia.
"Levanta, menina! Acorda! Agora! Preciso de ajuda para preparar o café da manhã."
Madill morava no quarto da empregada. Seu pai, um imigrante búlgaro, era advogado e sua mãe era uma faxineira brasileira, e ambos morreram em um terrível acidente de carro em 31 de março.
Ela virou as costas e tentou lembrar do sonho que estava tendo. Era um sonho agradável. Madil se sentia confortável nos braços do Saci, apesar de ser uma criatura lendária conhecida por pregar peças nas pessoas. Ela sentiu a brisa fresca em seu rosto enquanto giravam em um redemoinho, e o riso do Saci ao seu lado era contagiante.
"Você já levantou?" ela perguntou. "Quase", respondeu Madil. "Bem, apresse-se então. Quero que você leve o cachorro para fora antes de ir para a escola. Quero tudo perfeito hoje é o aniversário do Pedro."
O aniversário do Pedro - como ela poderia ter esquecido? Madil levantou-se lentamente e começou a procurar suas sandálias. Ela as encontrou debaixo da cama e, depois de remover uma barata delas, calçou-as. Madil estava acostumada com baratas porque o quarto da empregada ficava perto da lavanderia e os ralos sempre estavam cheios delas.
Talvez fosse porque ela morava em um quarto de empregada escuro, mas Madil sempre foi pequena e muito magra para a idade dela. Ela parecia ainda menor e mais magra do que realmente era porque só usava as roupas velhas do Pedro, que era um menino e muito maior do que ela. Madil tinha um rosto fino, joelhos ossudos, cabelos pretos e cacheados até os ombros, e olhos muito verdes que se destacavam contra sua pele morena. Ela sempre usava roupas de cores neutras que estavam remendadas, e já havia quebrado o nariz várias vezes lutando com Pedro, que sempre a socava no nariz. A única coisa que Madil gostava em sua aparência era uma cicatriz fina, mas cartilaginosa, em forma de meia-lua na palma de sua mão. Ela existia desde que as pessoas conseguiam se lembrar, e a primeira pergunta que se lembravam de fazer ao tio Souza era como ele a tinha conseguido. "Pulando de telhado em telhado na favela onde ele morava", ele tinha respondido. "E não faça perguntas." "Não faça perguntas" era a primeira regra para viver uma vida pacífica como os Souzas, e no Brasil em geral.
O tio Souza entrou na lavanderia quando Madil estava colocando a coleira no cachorro. "Alise esse cabelo", ele ordenou, como uma saudação de bom dia. Cerca de uma vez por semana, o tio Souza dava uma olhada por cima do jornal e gritava que Madil precisava relaxar o cabelo. Madil deve ter feito mais sessões de alisamento e chapinha do que todas as meninas de sua classe juntas, mas não fazia diferença. Seu cabelo simplesmente voltava a enrolar em cachos perfeitos.
Madil saiu para levar o cachorro para passear. Lá fora, ela viu uma mico cinza andando pelas arvores e olhando para ela como se quisesse se comunicar. Ela disse oi, mas a amico pulo para o fio eletrico e foi embora. Ao voltar para o apartamento, ela viu a pilha de presentes que seu primo Pedro havia recebido no aniversário dele. Ela sentiu um pouco de inveja, sabendo que seu próprio aniversário era no próximo mês e que não receberia presentes como Pedro.
Ao entrar na sala de estar, Madil percebeu que o cachorro já estava lá, pulando e abanando o rabo. De repente, o cachorro pegou um dos presentes com os dentes e começou a sacudi-lo vigorosamente. Madil correu para tirar o brinquedo do cachorro, mas era tarde demais - o brinquedo já estava quebrado. Em pânico, Madil tentou esconder o brinquedo embaixo da almofada do sofá, esperando que ninguém notasse. No entanto, assim que ela terminou de escondê-lo, sua tia entrou na sala de estar e a pegou no ato.
"O que você está fazendo?", perguntou a tia dela, com raiva na voz.
Madil hesitou por um momento, mas então mostrou as mãos. Para sua surpresa, o brinquedo quebrado não estava mais quebrado - era como se tivesse sido magicamente restaurado.
Confusa e aliviada, Madil se perguntou se tudo não passava de sua imaginação, mas sabia no fundo que algo estranho havia acabado de acontecer. Ela olhou para a tia, que parecia ter esquecido o incidente e agora estava ocupada organizando o resto dos presentes. Madil respirou aliviada e decidiu manter o ocorrido estranho para si mesma, sabendo que ninguém acreditaria se ela contasse. Ela assistiu Pedro abrir seus presentes com empolgação, perguntando-se se haveria outras surpresas no dia.
Madil estava tirando a coleira do cachorro quando Pedro entrou na cozinha com a mãe. Pedro seria considerado bonito se não fosse insuportável, ele se parecia muito com o tio Souza. Ele tinha um rosto grande e rosado, um pescoço comprido, olhos azuis e cabelos loiros escorregadios e oleosos. Seus dentes eram grandes demais para sua boca de lábios finos. Tia Ana frequentemente dizia que Pedro parecia um modelo infantil - Madil frequentemente dizia que Pedro poderia fritar um ovo com o óleo em seu cabelo.
Naquele momento, a campainha tocou e Tia Ana foi atender enquanto Madil e Tio Souza assistiam Pedro desembrulhar uma nova bicicleta, um conjunto de soldadinhos de brinquedo, um carro de controle remoto, um kit de ciência, um jogo de tabuleiro, uma bola de futebol, um par de patins, um kit de avião modelo e um conjunto de trem. Ele estava rasgando a embalagem de um colar de ouro quando Tia Ana voltou, parecendo tanto brava quanto preocupada.
"Má notícia, querida. O Sr. Lobo não pode ficar com ela", disse ela, balançando a cabeça na direção de Madil.
Pedro ficou vermelho de raiva, mas o coração de Madil pulou uma batida. Todos os anos, no aniversário de Pedro, seus pais o levavam para passar o dia com um amigo no clube, cachoeiras, cafés ou no cinema. Todos os anos eles deixavam Madil com o Sr. Lobo, um velho louco que morava nas proximidades. Madil odiava o lugar. Toda a casa cheirava a queijo francês e o Sr. Lobo mostrava-lhe fotos de seu antigo programa de intercâmbio na Europa o tempo todo.
"E agora?" perguntou Tia Ana, olhando furiosamente para Madil como se ele tivesse planejado tudo.
"O que agora?" - Tia Ana perguntou, olhando furiosamente para Madil como se ele tivesse planejado tudo. "Poderíamos ligar para a Graça" - sugeriu Tio Paolo. "Não seja bobo, Paolo, ela odeia a garota." Os Souzas frequentemente falavam sobre Madil dessa maneira, como se ela não estivesse lá - ou melhor, como se fosse algo muito desprezível que não pudesse entendê-los, como uma ameba. "E a sua amiga, como é o nome dela, Rosa?" "Ela está de férias nos Lençóis Maranhenses."
"Você poderia me deixar aqui", arriscou Madil com esperança.
A tia Ana pareceu ter engolido um caramujo vivo. "E quando voltarmos, encontrar a casa em chamas?" ela rosnou. "Eu não vou colocar fogo na casa", prometeu Madil, mas sua tia e seu tio já não estavam mais ouvindo.
"Talvez possamos levá-la conosco para o Zoológico da Pampulha e deixá-la caminhar ao redor da lagoa enquanto visitamos", disse a tia Ana lentamente.
"O lago é imenso, nunca mais vamos encontrá-la, e se os militares a virem sozinha, vai causar ainda mais problemas para nós."
Pedro sentou no sofá e começou a soluçar como se não pudesse respirar. Na verdade, ele não tinha nenhum problema, na verdade, ele sabia que se fizesse esse show, sua mãe daria a ele tudo o que ele quisesse.
Nesse momento, o tio olhou para o relógio da sala e gritou: "Temos que ir agora, senão não vamos conseguir visitar o zoológico inteiro antes que feche."
"Eu estou te avisando" - ele disse, se aproximando com seu rosto vermelho e barba loira quase tocando o rosto de Madil - "Eu estou te avisando, a primeira travessura que você fizer, a primeira, você será trancada no quarto da empregada até a Páscoa.
"Eu não vou fazer nada" - disse Madil - "Eu juro..."
Mas o tio Paolo não acreditava nela. Ninguém nunca acreditava. O problema era que coisas estranhas sempre aconteciam ao redor de Madil, e não adiantava dizer aos Souzas que não era culpa dela. Certa vez, tia Ana, cansada de ver Madil voltar do cabeleireiro como se não tivesse ido, pegou o ferro de passar roupa e alisou o cabelo dela contra a mesa da cozinha, queimando seu couro cabeludo e deixando seu cabelo super liso, exceto pela franja. Pedro riu de Madil, que passou a noite imaginando como seria a escola no dia seguinte, onde já riam dela por causa de suas roupas masculinas. Na manhã seguinte, porém, quando ela acordou, seu cabelo estava exatamente como antes, com cachos perfeitos. Eles a trancaram na sala da empregada por uma semana por causa disso, apesar de suas tentativas de explicar que não seria capaz de explicar como seu cabelo havia retornado à sua forma natural tão rapidamente.
Tia Ana uma vez tentou obrigá-la a usar um vestido velho que havia comprado em uma dessas lojas de segunda mão (marrom com pompons laranjas) para ir ao casamento da irmã do tio Paolo. Quanto mais ela tentava vesti-lo, menor o vestido parecia ficar, até parecer feito para uma boneca de pano e certamente não serviria em Madil. Tia Ana concluiu que devia ter encolhido na lavagem, e Madil, para seu grande alívio, não foi punida, mas teve que passar a noite na casa do Sr. Lobo.
Por outro lado, ela se meteu em grandes problemas quando a encontraram no telhado do mercado central. A gangue de Pedro estava perseguindo-a, como sempre, e para surpresa tanto de Madil quanto dos outros, ela acabou sentada no topo da caixa d'água.
Os Souzas receberam uma ligação muito brava do diretor do mercado, relatando que Madil tinha estado escalando os prédios do mercado. Mas tudo o que ela tentou fazer (como ela gritou para o tio Paolo através da porta trancada do quarto da empregada) foi pular nas grandes sacolas de lixo. Madil supôs que talvez o vento a tivesse pegado no momento em que ela pulou.
Mas hoje nada daria errado. Valeu a pena até estar na companhia de Pedro para passar o dia em algum lugar que não fosse a escola, o pequeno quarto ou o quarto que cheirava a queijo na casa do Sr. Lobo.
Madil sentou-se no banco de trás do carro, olhando pela janela enquanto a cidade passava. Ela estava perdida em pensamentos, cantarolando a música no rádio "Vamos lá, vamos, esperar não é saber. Quem sabe fazer, não espera acontecer", quando de repente, a música parou abruptamente. Confusa, ela se virou para o tio, Sr. Souza, que estava dirigindo.
""O que aconteceu com a música?" ela perguntou.
"Aquela música criticava o governo. Pessoas inteligentes não fazem esse tipo de coisa." Madil franziu a testa, sem entender. "Mas por que eles não podem expressar suas opiniões?"
"Porque isso causa problemas", interveio Pedro.
"Mas e a liberdade?" perguntou Madil, sentindo-se frustrada.
O Sr. Souza suspirou. "Não existe liberdade absoluta. Você tem que considerar as consequências de suas ações."
Madil ficou em silêncio, seus pensamentos ainda em turbilhão. Enquanto o carro continuava pela estrada, o rádio permanecia em silêncio, e o único som era a voz do locutor de notícias no rádio. Os Souzas e Madil chegaram ao zoológico, e a empolgação de Pedro era palpável. Ele havia falado sobre o zoológico por semanas, desde que seus pais prometeram uma visita em seu aniversário.
Ao entrarem no zoológico, foram recebidos pelo som dos animais e o cheiro de pipoca. Madil olhou ao redor com espanto, absorvendo todos os sons e visões. Ela nunca tinha ido a um zoológico antes, era uma experiência completamente nova para ela.
Pedro estava ansioso para ver seus animais favoritos. Eles passaram pelas girafas, elefantes e macacos, mas Madil ficou mais fascinada pelos grandes felinos. Ela ficou boquiaberta enquanto assistia uma leoa se deitar ao sol, seu pelo dourado brilhando na luz.
De repente, um rugido alto ecoou pelo zoológico, fazendo Madil pular de medo. Pedro riu e apontou para o recinto do tigre.
"Veja só, Madil, esse é o meu favorito!" ele exclamou.
Madil seguiu Pedro até o recinto do tigre, onde encontraram uma grande multidão reunida. O tigre estava andando de um lado para o outro em sua jaula, rosnando e mostrando os dentes para as pessoas que o observavam.
Pedro estava tão animado que subiu na grade para ter uma visão melhor. Madil hesitou, mas não queria ficar de fora, então seguiu Pedro subindo na grade.
De repente, o tigre avançou contra eles, suas garras estendidas. Madil gritou de terror quando sentiu que estava caindo, mas então ouviu uma risada familiar.
Era o Saci, girando ao seu redor novamente em um redemoinho. Ela sentiu o vento em seu cabelo e a alegria em seu coração, enquanto o Saci sussurrava em seu ouvido: "Não se preocupe, eu te seguro."
Quando Madil abriu os olhos novamente, estava deitada no chão, cercada por espectadores preocupados. Pedro estava ao lado dela, sacudindo-a e chamando pelo seu nome.
Pedro estava claramente incomodado por ter que se preocupar com Madil. "Será que não consegue ser mais cuidadosa? Você sempre está causando problemas!", ele reclamou enquanto olhava em volta para ver se alguém estava prestando atenção nele.
"Não sabia que era tão fraca a ponto de cair do nada", ele continuou, demonstrando sua falta de empatia. "Ainda bem que eu estava aqui para te salvar, senão nem sei o que teria acontecido com você", acrescentou, claramente tentando se fazer parecer um herói.
Madil levantou-se lentamente, ainda se sentindo um pouco tonta. Ela olhou ao redor, mas não havia sinal do Saci.
"Não sei", respondeu ela. "Acho que só tropecei."
Pedro a ajudou a se levantar, e eles continuaram o passeio pelo zoológico, mas Madil não conseguia se livrar da sensação de que algo estranho acabara de acontecer. Ela sentia uma energia estranha percorrendo seu corpo, como se tivesse sido tocada por algo mágico.
Ao saírem do zoológico, Madil virou-se para Pedro e perguntou: "Você acredita em lendas, Pedro?"
Pedro a olhou com curiosidade. "O que você quer dizer?"
"Quero dizer, você acredita em coisas como o Saci?"
Pedro deu de ombros. "Não sei. Acho que é possível. Por que você pergunta?"
Madil sorriu para si mesma. "Sem motivo. Só estava pensando em algo."
Ela sabia que nunca esqueceria os estranhos eventos do aniversário de Pedro.
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